Educação nas Prisões: Uma Questão Humanitária


Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: Tu não és o Cristo? 
Salva-te a ti mesmo e a nós!
Mas o outro o repreendeu, dizendo: 
Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? 
Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; 
mas ele não fez nada de mal. 
E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado.
Jesus lhe respondeu: 
Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso.
(Lucas 23, 39-43)



Nessa passagem do Evangelho, Jesus encontra-se crucificado entre dois outros condenados. Esses dois, ao contrário de Jesus, haviam cometido delitos e pagavam pelos seus crimes, conforme a lei dos homens. Um dos condenados, no entanto, demonstra-se arrependido e pede a Jesus que se lembre dele quando entrar no reino dos céus. E Jesus lhe responde, dizendo que naquele mesmo dia ambos estariam no paraíso. Jesus, portanto, não livrou o malfeitor da condenação a que foi submetido, mas tratou-o com dignidade. E é justamente sobre essa dignidade que pretendo falar nessa matéria, mas não a que Jesus deu a um condenado, refiro-me às nossas atitudes perante um condenado, perante alguém que cometeu um delito.

Diante disso pergunto: Pode a sociedade dar dignidade a um preso, condenado por ter cometido um crime? A resposta a essa pergunta é “Sim”. Sobretudo nós, cristãos, e ainda mais franciscanos, que devemos procurar agir de acordo com o que professamos – “passar do Evangelho à vida, e da vida ao Evangelho” (Regra da OFS, 4). Portanto, não devemos, como cristãos e franciscanos, em momento algum, sob nenhuma circunstância, propagar que “bandido bom é bandido morto”. Quem comete crime, deve pagar por seu ato delituoso, mas sua pena deve conduzi-lo à ressocialização, não ao flagelo, pois isso é desumano e contra o que Jesus pregou para a humanidade. E é justamente sob esse viés que trago à tona, neste texto, uma questão pouco conhecida pela sociedade – a educação nas prisões. Promover ensino aos presos é tratá-los com dignidade; é dar-lhes a oportunidade de ter acesso a um conhecimento formal que contribuirá para a sua reinserção social, com a consciência de que viver em sociedade requer dos cidadãos respeito às regras e ao próximo; é dar-lhes a oportunidade de conhecer uma cultura letrada, que os tirará da ignorância e das margens sociais, inserindo-os num contexto social global, pois eles terão condições de realizarem uma melhor leitura de mundo e, consequentemente, agirão com respeito e alcançarão liberdade e cidadania.

Essa compreensão acerca dos benefícios da educação em ambiente de privação de liberdade não é algo novo. Em 1948, a ONU (Organização das Nações Unidas) proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em sua Assembleia Geral. Nesse importante documento humanitário, afirma-se que “Toda a pessoa tem direito à educação” (art. 26, 1) e esta deve “visar à plena expansão da personalidade humana” (art. 26, 2). Percebam que esse documento internacional não limita o alcance da educação, ou seja, ela é um direito de todos, é um direito do homem, independente de estar em pleno gozo de sua liberdade ou não; independente de estar na infância, na adolescência ou na fase adulta da vida. 

Apesar disso, especificamente em relação à população privada de liberdade, a ONU, em 1955, instituiu as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, que determina, em seu Princípio 6º, que “todos os presos devem ter direito a participar em atividades culturais e educacionais.”

Além disso, em 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), no item 1 do artigo 13, reforça a DUDH. Os países signatários desse documento declaram que “a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos do homem e das liberdades fundamentais”. Concordam também que “a educação deve habilitar toda a pessoa a desempenhar um papel útil numa sociedade livre, promover compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações e grupos, raciais, étnicos e religiosos, e favorecer as atividades das Nações Unidas para a conservação da paz.” 

Em conformidade com o 6º Princípio das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, no Brasil, através da Lei de Execuções Penais de 1984, em seu artigo 17, lê-se que “A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado”. Mas também, a Constituição Federal de 1988, nossa lei magna, em seu artigo 205, afirma que a educação é um direito de todos e que há o dever Estado para com a educação, que será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao aperfeiçoamento humano, a fim de inseri-lo não só no mundo do trabalho, mas prepará-lo para o pleno exercício da cidadania. Ou seja, o preparo do indivíduo para condução de sua vida com autonomia e dignidade, a conscientização de que a vida em sociedade prevê o gozo de direitos, mas também o cumprimento de deveres passa pela experiência escolar, a qual promove a educação formal através de um elenco de disciplinas.

Os preceitos constitucionais sobre educação são ratificados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, que, primeiramente, versa que a educação compreende processos formativos, os quais são desenvolvidos “na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. 

Estudar, portanto, é um direito garantido por dispositivos legais nacionais e internacionais, e se estende, inclusive, a quem vive em privação de liberdade. Nessa condição, quem perde o direito à liberdade não pode ter suprimido o seu direito à educação.

Neste espaço e neste contexto tão singulares – a prisão –, a educação tenta realizar sua ação transformadora. É preciso compreender que a educação em âmbito prisional defronta-se com um paradoxo e, consequentemente, com um desafio a ser enfrentado, que é fazer valer a função emancipadora da educação em um ambiente que se sustenta pela cultura da opressão. 

Estudos do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, apontam que o público carcerário, além de apresentar defasagem em sua vida escolar, consiste numa população marginalizada, que não teve seus direitos básicos garantidos pelo Estado. Isso quer dizer que essa população não teve garantidos seus direitos humanos, nem seus direitos constitucionais, tornando-se pessoas invisíveis até cometerem algum crime.

A relação entre a baixa escolaridade e a criminalidade é notória, o que sugere que, no Brasil, a falta de investimento em educação e falta de incentivo à educação contribuem para os altos índices de criminalidade. O Conselho Nacional de Educação já se pronunciou sobre essa pauta e afirmou que “os presos sem escola acabam perpetuando sua condição de pobreza”, e que o público carcerário compreende “a população mais pobre e com mais baixa escolaridade”. Isso mostra a existência de correlação entre a situação de baixa oportunidade e a situação de violência.

Diante desse panorama, a educação exerce papel fundamental como programa de reinserção social para jovens e adultos privados de liberdade, fazendo com que o indivíduo se redescubra e eleve sua autoestima cidadã, que o faz parte integrante de uma sociedade, consciente de seus direitos e deveres perante ela. 

A educação é um direito humano e deve ser defendida pela sociedade. Negar o acesso à educação é desrespeitar o que prega a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Negar ao ser humano, independente de sua condição, o que lhe é de direito como ser humano, é condená-lo ao flagelo e à marginalização social. Dar oportunidade ao preso é trata-lo com dignidade.

Enquanto não lutarmos por uma sociedade igualitária, muitos direitos humanos serão negligenciados, perdidos na falácia de que “direitos humanos são para humanos direitos”. Essa frase, e tudo de ruim que ela carrega, não deve nunca sair da boca de um cristão, pois, em Gênesis 1:26, Deus diz “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. Ora, se somos a imagem e semelhança de Deus, como um cristão pode admitir que a existência de “humanos não direitos”? Isso é negar a perfeição da criação de Deus, é promover a segregação e o preconceito, é propagar julgamento vãos, que perpetuam as condições de exclusão social, e não é isso que Deus espera de nós, cristãos. Deus espera que tratemos com dignidade todos os irmãos, independente de suas condições, assim como Jesus fez com o condenado na cruz.



Texto: Marcos Cortinovis (publicado na Revista Paz e Bem. Edição março/abril – ano 60 – nº 356, pág. 16-17.)
Edição/Postagem: Sandra Regina de Oliveira
Imagem: Rede Brasil Atual

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